Um "eu" que expressa outra pessoa
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Antes de mais nada, chamemos de "elocutivo" a pessoa que fala; "alocutivo" aquela com quem se fala e "delocutivo" a pessoa de quem se fala, independentemente do pronome usado.
Os versos de Chico Buarque, na canção Teresinha, dizem: "Mal sei como ele se chama, / mas entendo o que ele quer, / se deitou na minha cama / e me chama de mulher..." Esse "eu", sujeito de "sei" e de "entendo", e as formas respectivas "me" e "minha" não podem referir-se ao autor Chico Buarque, mas à personagem que se diz "eu". O "eu", portanto, é elocutivo só na estrutura de superfície, mas na estrutura profunda é um pronome delocutivo: denota a pessoa de quem se fala, como num romance em 1ª pessoa, em que o personagem que conta a história é a pessoa de quem se fala e não a pessoa que fala, o romancista. |
Quando "ele" sou eu
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O pronome "ele" também pode ser elocutivo, ser uma referência à pessoa que fala. Batem à porta com insistência, e a dona de casa, correndo para atender, grita a quem bate para acalmá-lo: "Já vai, já vai!". Esse "já vai" significa "já vou".
Melhor exemplo do "ele" elocutivo está nos requerimentos, em que o requerente, por gentileza compulsória, se trata a si mesmo na 3ª pessoa: "Fulano requer de V. Exa. se digne conceder-lhe tal documento... Nestes termos, pede e espera deferimento." A gentileza aí é compulsória, porque uma regra de concordância verbal ensina que a 1ª pessoa predomina a 2ª. Se o requerente usar a 1ª pessoa, estará se colocando acima da 2ª pessoa, que é pessoa a quem se faz o requerimento, hierarquicamente, pelo menos no caso, acima do requerente. Para não se pôr acima da autoridade a quem se peticiona um favor, o solicitante se coloca num plano inferior, tratando-se como "ele". Quando a mãe diz ao filho: "Se você ficar quieto, mamãe vai comprar um presente para você". Esse "mamãe" é um pronome de tratamento de 1ª pessoa, equivalente a "eu". É, portanto, elocutivo. |
O "nós" que não nos inclui |
Normalmente, o pronome "nós" significa "eu + alguém diferente de eu". Mas o "nós" pode ser um pronome de tratamento de 2ª pessoa, equivalente a "tu" ou a "você", excluindo o falante.
O médico chega de manhã ao hospital e pergunta ao paciente: "Como estamos hoje? Como passamos a noite?" Obviamente, esse "nós" não inclui o médico; é alocutivo, faz referência à pessoa com quem se fala. A mãe que vai dar a sopa ao filho, diz-lhe carinhosamente: "Vamos tomar a sopinha?" Na verdade, é o filho que vai tomar a sopa. Esse "nós" exclui o falante e designa a pessoa com quem se fala. |
Quem é "você"?
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O "você" (tu) pode ser um pronome de tratamento de 1ª pessoa, elocutivo, designando o falante. Diz um rapaz a uma amiga: "Você chega cansado da rua, encontra sua mulher cansada, seu filho doente, e aí você fica maluco, sem saber o que fazer".
Esse "você" não está designando a amiga (a concordância nominal está no masculino, embora o rapaz esteja falando com uma moça), porque "você" é o próprio falante, que usa a forma de 2ª pessoa para que a amiga possa melhor colocar-se na pele dele. |
"Ele" é 2ª pessoa
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"Ele" pode ser pronome de tratamento de 2ª pessoa. O namorado pergunta à namorada se pode beijá-la. Em vez de dizer "Sim", ela diz: "Ele pede!", como quem acha estranho que se peça um beijo em vez de roubá-lo. Em Avelanoso, Portugal, Maria José de Moura Santos (Os Falares Fronteiriços de Trás-os-Montes. Separata da Revista Portuguesa de Filologia, Coimbra, 1967: 21) registrou "ele" como tratamento de 2ª pessoa:
- Num bais a buscar a lenha? - Porque num bai ele? [Por que não vais tu?] |
Tendência geral
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Os pronomes de tratamento em português (você), espanhol (usted), alemão (Sie) e italiano (lei) surgiram de expressões como "Vossa Mercê", "Vossa Graça" ou equivalentes (possessivo + substantivo abstrato), em que o falante se dirigia à qualidade do alocutado em lugar de se dirigir diretamente a ele. Por isso, Pero Vaz de Caminha, em sua Carta, ao dirigir-se ao rei, usa o pronome "ela" (= Alteza).
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