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4/09/14

Portugues: Etimologia; A ancora da palavra


A âncora da palavra

Se perdemos o lastro de uma referência concreta a que vinculemos um vocábulo, a língua gera um mundo à parte, difícil de captar  

Há, na formação de palavras, duas tendências bastante fortes e antagônicas, móveis como o riacho de Heráclito, cada uma produzindo o germe da outra, numa imagem parecida à doyin-yang. Essas duas forças seriam aquilo que, desde os estoicos, se convencionou chamar de significante e significado. No entanto, esses dois lados da mesma coisa, conhecida como signo linguístico (desde a publicação do Cours de Linguistique Générale, atribuído a Ferdinand de Saussure) são, na verdade, à luz da semiótica, uma espécie de signo, a saber, um símbolo, e tem uma terceira face, que se costuma chamar de "referência".



Dogma
A referência é por demais complexa para qualquer teorização linguística, mas é o assunto principal da ontologia. Divorciando-se da referência, a língua gera um mundo à parte. Hjelmslev talvez tenha sido o primeiro a mostrar que significado e significante fazem poucas incursões de volta à referência. Seu conselho de abandonar a referência, contudo, tomou ares dogmáticos nos estudos linguísticos do século 20. Um segundo dogma está no próprio Cours, que repete a já consagrada ideia de que a relação entre significante e significado é arbitrária. 

Se o recorte da referência e a postulação da arbitrariedade do signo são dois fundamentos da linguística moderna, por que chamá-los de dogmas? Obviamente, há razão nessas posturas. Mas, em vez de entendê-las como verdades absolutas, é preciso termos de forma clara em nossa mente que ambas nada mais são que decisões metodológicas. 

No início do século 20 havia muita discussão sobre os mesmos temas, como se vê pelo grande interesse pela estilística nessa época. Na revista Wörter und Sachen, as leis fonéticas dedutivas dos antigos neogramáticos foram postas em xeque perante as evidências fornecidas pela dialetologia e pela língua falada. Todo modo de se fazer etimologia estava balançando.

Infelizmente, esses raciocínios e indagações, tão produtivos quanto interessantes, foram abortados pelas guerras mundiais. Se, por um lado, se manteve a crítica à etimologia, por outro, não se recuperou o modo de fazê-la, dada a aversão pela história factual e o crescente desinteresse, desde então, por línguas mortas. Era a vez das línguas vivas, do sistema e da sincronia, valores pinçados do Cours e valorizados como algo novo. Décadas se passaram até se perceber que essas escolhas não refletiam o todo.

Cegueira
Obviamente a referência é algo difícil demais para uma teoria linguística: quando digo "cadeira" faço uma imagem mental daquilo que quero dizer em português, mas também posso usar o mesmo termo para esta cadeira específica que tenho diante de meus olhos. Ela, por sua vez, tem diferenças (que julgo pouco importantes) daquela outra cadeira específica que também tenho diante mim. 

Pouco importantes - apressemo-nos a dizer - para essa abstração que é o "significado": uma cadeira pode ser branca, a outra verde; pode ser de madeira, a outra de plástico; pode ser maior que a outra; mais pesada que a outra; pode ser parecida mas com pequenos detalhes e defeitos que as individualizam. Enfim, o material, o formato, a cor não são importantes para o signo "cadeira", pois isso pode vir em outro signo (cadeira de plástico, cadeirinha, cadeira azul). 

Se uma cadeira tem quatro pés e outra tem uma só base, apesar da diferença perceptível, diremos que estamos diante de duas cadeiras. Abstraímos a diferença, como pouco importante, ficamos voluntariamente cegos de maneira mais ou menos consciente, tudo dependerá da atenção, do que queremos focar. Na confecção do signo linguístico, osignificado depende dessa cegueira, sem a qual ele não se forma.

Aparentemente, isso ocorre não só na nossa espécie e a capacidade para distinguir se entrevê nas atitudes de inúmeros animais. Mas dizer que o signo linguístico não depende da referência é um exagero parecido com o que fez Berkeley em sua interessante filosofia. 

O segundo dogma é muito mais polêmico. De que tipo de arbitrariedade do signo estamos falando? Novamente, é óbvio que a sequência de sons c-a-d-e-i-r-a não tem nada a ver com a imagem mental descrita nos parágrafos anteriores. A mesma imagem se pode fazer por meio da palavra alemã Stuhl ou inglesa chair(que, por sinal, tem o mesmo étimo da portuguesa, o latim cathedra, palavra de origem grega). 

Os sons escolhidos por uma língua não remetem a nada da referência de forma clara, embora uma corrente antiga o negue, desde Platão, passando por Leibniz e Gébelin, Grimm, Rimbaud e linguistas pré-saussurianos. Desafiando tal postura, sempre houve o problema das onomatopeias e dos derivados. 

Bem-te-vi
Um animal como o bem-te-vi tem um nome (portanto, um significante) que é arbitrário, no sentido de que não há nada na essência de um bem-te-vi que deixe transparecer seu nome, a ponto de reconstruirmos o pássaro a partir do seu nome, sem a experiência. Mas o nome francês quiquivi e o inglês kiskadee mostram que os falantes de línguas distintas associam o som emitido pelo animal com um vocábulo trissílabo em que transparecem consoantes oclusivas e ao menos um som semelhante ao [i]. 

Ora, o inglês apresenta um sistema linguístico distinto do do português e evidentemente quanto mais distante a língua, mais complicada a associação fonológica (sobretudo se não tiver, hipoteticamente, uma vogal tão fechada e aguda quanto [i] com a qual se pode associar o som agudo da emissão do pássaro). Tal associação, além disso, não é obrigatória. 

Motivação
Uma segunda crítica à tese da arbitrariedade do signo, embora não tão bem justificada, envolveria a capacidade de o falante reconhecer elementos significativos no interior de palavras: estamos falando de questões tecnicamente conhecidas como "motivação". Nesse assunto, a etimologia tem algo a dizer.

O latim denominava sanguisuga um famoso verme que tem seu nome preservado em português como "sanguessuga". A motivação decorrente da composição dos seus elementos internos é evidente, uma vez que qualquer falante atento reconhecerá na palavra tanto "sangue" quanto "suga" (flexão do verbo "sugar"). O bicho, de fato, suga sangue e nada melhor que um nome em que tal atitude - essencial ao signo que o representa - esteja nomeada. 

Sanguessuga
O estruturalismo, favorável à tese da arbitrariedade do signo, observou que isso é só um dos enfoquespossíveis. Quando dizemos "motorista" enfocamos o motor do automóvel, mas em inglês driver enfoca a ação de dirigir (to drive "dirigir") e, em francêschauffeur, a ação de se esquentar o motor (chaud"quente"). Nenhuma língua está mais próxima da realidade que a outra, ao enfocar este ou aquele aspecto da ação. Decorrente disso, defenderam-se outros dogmas mais complexos, como o do relativismo cultural, hoje em dia tão brilhante e cautelosamente questionado por autores como Steven Pinker e Richard Dawkins.

Mas voltemos ao "sanguessuga". Talvez haja um componente importante para a preservação dessa motivação. Na preferência indisfarçável que a linguística moderna tem pela língua falada, a questão datransmissão sempre esteve paradoxalmente em segundo plano. 

Uma pessoa que lê e mora na cidade transmite uma palavra tão incomum no seu dia a dia quanto é um "sanguessuga" de forma distinta daquela que não lê, mas convive, à beira dos rios, com esses terríveis bichinhos. Uma coisa é o sanguessuga metafórico, outra é o animal com existência real para além das aulas de biologia ou de documentários televisivos. 

Platonismos
O dicionário etimológico de José Pedro Machado mostra que se dizia sambexuga no século 15, forma em que a motivação do signo está destruída. Um século depois, no dicionário de Jerônimo Cardoso, o verbetesambixuga mostra que não se tratava de forma isolada, mas sambexuga tinha tradição paralela à desanguessuga. No século 14 se vê samessuga, alterado dois séculos depois (samexuga). Ainda hoje ouvimos, na variação regional do português, formas comosamexungaxamexuga e xamexuma. Poderíamos fazer árvore genealógica dessas formas, como fazia Leite de Vasconcelos.

O último caso revela aquilo que dissemos acima sobre oyin-yang: de um lado, há uma força tentando preservar os dois elementos significativos (sangue e sugar), de outro, uma segunda força tenta gerar uma cadência musical por meio da aliteração vocálica e da repetição de sons como x e m (x...m...x...m, no caso dexamexuma). Os focos, quer no significado, quer no significante, se permutam ao longo da história. 

A gramática normativa interpõe-se, nesse caso, a favor da primeira opção de forma injusta, uma vez que a segunda também é válida na formação dos vocábulos e das línguas. Não é incomum pessoas serem ridicularizadas porque usam alguma das variantes não oficiais. Num site de relacionamentos, uma pessoa anônima capricha no seu preconceito linguístico: "tem um ex-vereador aqui de Registro que diz 'aqui em Registro tem muito xamexuma'... sabem o que é isso????Sanguessuga!!!!!! Eu heimmmmm". 

O platonismo intrínseco nas gramáticas normativas (as quais postulam uma forma ideal) e o fenômeno conhecido como shibboleth (com raízes na visão tribal e etnocêntrica dos falantes) rejeitam as variantes linguísticas, de maneira muito intensa e próxima da seleção darwiniana das espécies, a despeito da legitimidade e da história das formas. Apenas uma forma costuma prevalecer, à custa do sacrifício das demais, sem que barreiras geográficas se imponham. Para tal, bastam as barreiras fictícias que a própria cultura inventa. Verdade é que entre a forma motivada e a forma simbólica entrevemos outras, parcialmente motivadas, como sanguixuga, ou remotivadas:sanguechupa, sanguechuva (ou reinterpretadassanguessorba). 

Popular
A beleza desse movimento todo raramente é apreciada pelos falantes, normalmente inseguros e intolerantes para com a variação heraclitiana da língua, sedentos de uma norma que regule o aparente caos. A norma culta, emanada dos céus pelos gramáticos, costuma ter valor de verdade indiscutível. E isso infelizmente se tem acirrado, nos últimos anos, quase como na década de 20 do século passado.

Quando o falante transformou, pela primeira vez, a palavra sanguessuga, ou melhor, *sanguexuga, emsanguechupa, estava preocupado em reconhecer os componentes da palavra, uma vez que em -xuga não se vê com clareza o antigo verbo sugar. Tornou-se chupa. 

Nem é preciso uma gramática normativa atuar nesses casos, conhecidos como etimologias populares. Desse movimento, ninguém está poupado, por mais culto que se julgue. Como se pode verificar, o mesmo movimento que gerou sanguechupa cria, noutro falante, uma forma mais misteriosa: sanguechuva. Não raro, são dessas formas que nascem lendas, numa tentativa de devolver à referência fatos trancafiados na dinâmica exclusiva do significante-significado. 

Vínculos

Quem convencerá aquele que dizsanguechuva de que não há relação alguma entre o bicho e a chuva? Seria igualmente difícil um nativo de inglês imaginar quefish (peixe) em crayfish(lagostim) seja um acidente histórico (a palavra vem do francês antigo crevice) ou quechou (repolho) em choucroute (chucrute) seja uma ilusão (a palavra vem do dialeto alsaciano sûrkrût, equivalente ao alemão oficial Sauerkraut, na verdade, historicamente falando, o 'croute' seria o repolho, pois 'chou', melhor dizendo, o alsaciano sûr, significa 'azedo'). 

Criar realidades e outras referências complexas a partir de palavras e dos acidentes históricos por elas sofridos é uma característica demasiadamente humana. Crer nelas é o segundo passo. O terceiro movimento é julgar as crenças alheias como errôneas. Intervir intolerantemente, na tentativa de que a forma dominante prevaleça, é o quarto. Convivemos com todos esses passos diariamente.

Dança das cadeiras

Apesar da distinção entre as imagens deste quadro, diremos que todas são cadeiras: abstraímos a diferença e ficamos voluntariamente cegos na confecção do signo linguístico - o significado dependerá dessa cegueira, sem a qual ele não se forma.