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3/26/14

Etimologia

 

Etimologia

Sementes perdidas

Palavras cuja semelhança aparente faz supor a mesma origem escondem germinaçõe


Fazer etimologia requer dados e não imaginação. Ora, há línguas sem dados históricos. Como saber de onde vêm as palavras de uma língua indígena brasileira? Algumas pessoas afirmam que tupi e japonês têm semelhanças. De fato têm. Mas se pegarmos aleatoriamente duas línguas do mundo, elas também terão. Dos milhares de palavras que compõem uma língua, sempre haverá alguma coincidência entre duas línguas quaisquer. 

Os que defendem o parentesco entre o tupi e o japonês apresentam palavras quase idênticas, mas esse argumento é estranho, pois as palavras se modificam. Por que teriam permanecido misteriosamente parecidas antes da existência da escrita, da escola e da mídia, durante milênios? 

A verdadeira semelhança de línguas cognatas, contudo, é abstrata e está em relações fonéticas pouco óbvias, mas regulares: demandam estudo e prática para ser reconhecidas. Se isso não é realizado, acharemos semelhanças entre português e fenício, entre sumério e basco, entre quaisquer peças isoladas do quebra-cabeça incompleto da história. 

História de acidentes
Pensa pior ainda quem justifica o parentesco entre o tupi e o japonês por meio do aspecto físico "oriental" de nossos índios, por causa da alta incidência da mancha mongólica nos recém-nascidos ou por causa da ausência do fonema /l/ nas duas línguas: tudo isso são argumentos demasiadamente ad hoc. 

Nesses momentos, vale mais a nossa vontade que os dados. 
A origem oriental de nossos índios é algo inegável, mas entre os asiáticos que atravessaram o Estreito de Bering (ou o oceano Pacífico) não havia nenhum que falasse alguma língua tão aparentada com o japonês simplesmente porque, naquela época tão remota, não existia nem japonês nem tupi. 

Também não é sensato que, à luz dos metaplasmos, um fonema se mantivesse.

Mais estranho ainda seria que a ausência de um fonema se mantivesse ao longo de milhares de anos: afirmar isso seria, no mínimo, uma espécie de racismo, pois revelaria que esses povos, ao longo de milênios, teriam uma incapacidade inata de pronúncia ou de percepção de uma distinção fonológica que parece simples e óbvia só para os que têm uma visão eurocêntrica dos processos linguísticos.

A história das palavras percorre acidentes difíceis de determinar. Não é à toa que as línguas semíticas e as românicas sejam as mais propícias à criação de teorias linguísticas. Afinal, são elas as mais bem documentadas. Localizar os argumentos a favor de um étimo é o único grande desafio. E nem sempre isso é possível. Mais grave: nem sempre há interesse e disposição, no mundo contemporâneo de pouco apreço pela história, a despeito das facilidades tecnológicas. 

Vejamos a seguir um único exemplo, o da palavra "semente".

Os clãs da semente e do sêmen

O português tem a palavra "semente", que vem do acusativo sementem do latim. 
No dicionário, a palavra latina aparece no nominativo (sementis). 
Ninguém nega que o português "semente" e palavras cognatas em outras línguas (como italiano semente ou sementa, provençal semen, catalão sement, espanhol simiente) venham desse étimo óbvio. 
Com um pouco de variação, um plural neutro *sementia teria dado o romeno sămânţă, o italiano semenza, o francês semence, o logudorês sementa, o friulano semence e o provençal semença. 
Poderia terminar aí a nossa história.
Mas vemos que sementis em latim é a forma popular que se divulgou pelo latim clássico e vulgar. 
Na mesma época, havia a palavra semen, que era mais antiga. 
Conhecemos em português a palavra "sêmen", que é, na verdade, uma metáfora. 
O mesmo ocorre com o grego spérma, que também significa "semente" e originou "esperma".
Dentro das discussões filosóficas sobre os elementos que compunham as coisas (que iam dos átomos às letras), o termo foi traduzido do grego para seu equivalente latino. 
Da mesma forma, vieram todas as metáforas associadas à palavra.
O grego spermatikós foi traduzido por seminalis, donde vem o português "seminal". 
Também daí nasce seminarium, o local destinado aos brotos, isto é, os canteiros onde germinam as futuras colheitas ou flores. 
Não é difícil imaginar por que as antigas instituições educacionais eram chamadas de "seminários", locais onde floresceriam ideias. 
Mais tarde, da noção de lugar passou-se à dos integrantes dos seminários, isto é, aos próprios professores e daí às ideias desses professores semeadas em aulas ou em encontros específicos. 
Toda mudança semântica é, na verdade, uma metáfora ou uma metonímia. 
E no caso das palavras latinas, a maioria das ideias abstratas e culturais vieram da zona rural. 
Também do vocábulo semen nasce a palavra seminare que se transformou, mediante as regras fonéticas, no "semear" usado em português. 
Pela via culta, disseminare (semear em todas as direções) foi ressuscitada e gerou a palavra "disseminar", usada tanto para coisas boas quanto para as ruins.

 

O núcleo da semente

O empolgado, vítima do insight maravilhoso da Etimologia do quadro anterior, ao observar que a vida rústica e a intelectual andam de mãos dadas nas figuras de linguagem, gostará de ir além. 
Para isso, é preciso entender a fundo a palavra semen (semente) em latim. O radical dessa palavra é o verbo serere em latim, mais arcaico que seminare. 
A raiz é se-, como se vê ao aprendermos a conjugação verbal ("eu semeei" se diz seui). Trata-se de verbo irregular, cujos detalhes de sua forma anômala só poderão ser encontrados se formos ao indo-europeu. 
Nesse modelo, acharemos argumentos para justificar o -r- que vem após a raiz e forma o radical ser-. 
A raiz se- para o ato de semear se encontra em uma área extensa: das línguas eslavas às célticas (exemplos: russo séjat', alemão säen). Comparando essas línguas, entendemos de onde vem o -r- do latim serere. 
Trata-se de um redobro, fenômeno comum e vivo no sânscrito e no grego. 
Por exemplo: 
O verbo latino mordere (morder) fazia o passado como momordi (eu mordi).
O pretérito perfeito do verbo grego lýo (desligar) era lélyka.
Da raiz sânscrita pac deriva-se o perfeito papaca (cozinhei). 
As formas de redobro do presente são mais antigas e assistemáticas. 
De qualquer forma, o verbo serere seria a forma clássica de um latim arcaico *sesere (ou melhor, *sesese), indicando, na origem, o ato de "ir semeando continuamente", "ficar semeando". 
O rotacismo do -s- intervocálico, isto é, a transformação do -s- em -r-, é um fenômeno documentado na passagem do latim arcaico para o latim clássico. 
Ensina-nos o melhor dicionário etimológico já escrito (o Dictionnaire Étymologique de la Langue Latine, de Alfred Ernout e Antoine Meillet), que sa- do particípio satus é uma alternância vocálica, comum do indo-europeu, que tem testemunhos nas línguas célticas. 
Na formação da palavra latina semen verifica-se o sufixo -men e, como em outras palavras latinas (estudadas por Érica Soares de Freitas, verwww.usp.br/gmhp), é uma derivação bem antiga que podemos ver no germânico e no lituano. 
O -m- de "sêmen" também se encontra numa divindade (Semo), abandonada pela religião oficial romana, mas cultuada na zona rural.

 

 

Maravilhas em série

O destino de serere se chocou com o de outro verbo homônimo que significava "trançar, entrelaçar, colocar-se em fila", cujo derivado mais famoso é series, donde a palavra "série". 
O particípio, mais regular do que seu homônimo (sertus), será a base de um número grande de palavras associadas à retórica e ao direito. 
Seus derivados tiveram mais sucesso na vida urbana do Império Romano, que acabou por abandonar o irregular serere com o sentido de "semear". 
Também o perfeito desse segundo serere é mais regular: serui e não seui, mostrando que o -r- tem outra origem. 
Conjugações irregulares, é preciso dizer, têm uma sobrevida incrível ao longo dos milênios de história da língua e só desaparecem quando o contexto social as torna dissonantes, esquisitas, pouco funcionais.

 

O confronto das palavras com mesmo nome

Os dois significados de serere, usados na agricultura e no artesanato, acabaram por entrar em concorrência, vencendo o segundo 
A transição da agricultura para o comércio, e deste para o império, coincide com a própria história de Roma. Exemplo disso são os compostos prefixados. 
O poder dos prefixos latinos não se deve subestimar. Assim adserere (no clássico, asserere) tinha dois homônimos: "plantar junto de" e "ligar a si mesmo, afirmar, defender", mas só o segundo sobreviveu em palavras como "asserção", "assertivo". 
Também conserere era "plantar tudo junto" ou "ligar, unir" e só a última acepção sobreviveu em "conserto", "consertar". 
Por fim, disserere era "plantar, jogando as sementes para todos os lados" ou "retirar as tramas, expor, raciocinar", a que vemos em "dissertar", "dissertação". 
Do segundo serere temos inserere (trançar para dentro, introduzir, misturar), que suplantou o homônimo que significava "plantar dentro, implantar, enxertar" e se transformou no "inserir" português, presente na palavra culta "inserção" e na popular "enxerido". 

 

O deserto dos prefixos

Deserere (destrançar, sair da linha) passou a ser usado pelo jargão do exército romano. O particípio desertus gerará o verbo "desertar" e os substantivos "desertor" e "deserção". 
A palavra latina para "deserto" é desertum, entendido como um outro derivado de deserere (isto é, seu particípio no gênero neutro). Assim, desertum poderia ser entendido como "o abandonado", daí "um local abandonado, inculto, selvagem". 
Alguém me perguntou certa vez se "deserto" não teria vindo, na verdade, do egípcio dsrt (o vermelho), que se lê convencionalmente deshret ou desheret, por oposição ao Nilo, chamado de "o negro". 
Boa pergunta. 

A palavra egípcia é muito mais antiga que a latina. Os romanos só conheceram desertos após a sua expansão militar e poderia ser um empréstimo. 
Não é impossível que tenhamos uma homonímia (e uma etimologia popular) entre o particípio de deserere e a palavra egípcia dsrt, que nada tem a ver com as duas raízes que vínhamos comentando. 
Descobrir a verdade sobre duas hipóteses plausíveis é desafiador ao etimólogo e uma tarefa bem distinta da que costumeiramente tem de fazer: defender-se de etimologias fantasiosas.