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8/10/12

Contemplação e conhecimento

Contemplação e Conhecimento: breve reflexão à luz da filosofia

Ana Farache - 06 de Agosto de 2012 - 5 Comentários

Toda alma torna-se o que contempla
 
Plotino: 2008, p. 75.
Assim, reflito: Contemplar é ver o que está latente e intocável no contemplado. É ver nele o que percebo e sinto que também está em mim. É aceitar como o visto está envolto e não deixar que o invólucro cegue minha visão. O que contemplo vai além do que apenas meus olhos seriam capazes de enxergar. Nas palavras de São Tomás de Aquino: ubi amor, ibi oculus, “onde está o amor, aí está o olhar”...
 
Os princípios da contemplação têm sustentações históricas que se estabelecem num total entrosamento com a abordagem científica. Portanto, não por acaso, e justamente por esse motivo, a palavra contemplação – do latim contemplatio, que significa ação de olhar atentamente, reflexão, meditação – seja equivalente ao termo grego theoria. Mas, apesar dos dois vocábulos serem sinônimos, a expansão do império da razão no Ocidente, notadamente, marcou fortemente o conceito de contemplação como algo alheio ao pensamento.

Voltando-nos para os primórdios da filosofia greco-romana, iremos constatar que Pitágoras, por exemplo, não afastava a dimensão contemplativa do pensamento científico. Foi ele quem criou no sul da Itália, em torno de 450 a.C., uma das primeiras comunidades contemplativas conhecidas, ao mesmo tempo religiosa e marcada, sobretudo, pela abstração matemática. Pitágoras acreditava na imortalidade da alma e na sua transmigração através de vários corpos com a finalidade de realizar sua purificação. A conexão entre a transmigração da alma e a contemplação era firmada a partir da concepção de que “por meio da contemplação (theoria), a alma avança no conhecimento (gnosis) de Deus, que a transforma, segundo Platão, até tornar-se divina” (Citado por WALLACE, 2009, p. 25). Um conhecimento que, para o texto da filosofia hindu, Siva Samhita[1], é a própria iluminação:

Somente o Conhecimento é eterno. Ele não tem início nem fim. Não existe nada fora ele. A aparente diversidade do mundo é resultante da limitação dos sentidos. Quanto esta limitação desaparece, apenas o Conhecimento, e somente ele, resplandece (Citado por KUPFER, 2009, p. 51)

Esse conhecimento poderia ser despertado justamente pela prática da contemplação. Para o teólogo do cristianismo primitivo[2], Orígenes de Alexandria[3], o homem já carrega consigo, ao nascer, esse conhecimento de Deus. Quase três séculos após os escritos de Orígenes, essa visão da reencarnação e imortalidade da alma será condenada através de um édito publicado pelo Imperador Justiniano, em 543, no qual ia de encontro à ideia do teólogo da preexistência: “Quem sustentar a mítica crença na preexistência da alma e a opinião, consequentemente estranha, de sua volta, seja anátema” (ATKINSON, 1997, p. 47).

O édito foi posteriormente referendado durante o V Concílio Ecumênico de Constantinopla II, de 553, quando é declarada como herética a doutrina da reencarnação e passa a ser rejeitado todo o pensamento do filósofo e teólogo da Alexandria. Antecedendo essa proibição, o tema já havia sido abordado por Santo Agostinho[4] que, pouco antes de sua conversão ao cristianismo, defendia a existência da alma a partir do pensamento platônico: teríamos um tipo de conhecimento adquirido pelos órgãos sensoriais e outro captado pela alma.

O primeiro estaria condicionado aos sentidos e relacionado aos objetos/imagens exteriores, ou seja, estruturado a partir de qualidades instáveis. Já o conhecimento adquirido pela alma não teria influência dessa ação e estaria apoiado em regras imutáveis, que não podem ser diferentes do que são, uma vez que são permanentes e, desta forma, verdadeiras. Esse contato com o pensamento platônico chegou a Agostinho recuperado e apresentado principalmente por Plotino.

Para o filósofo, o silêncio é um estado inerente da contemplação.  Quando contemplamos, o silêncio se apossa do nosso interior. Nossa mente se cala. Escuta. “A alma, então, atinge a tranquilidade e nada busca por estar plenificada, e a contemplação, nesse estado, repousa no interior, por confiar possuir” (2008, p. 65).

A experiência mística estaria relacionada a um crescimento espiritual com base num esforço não apenas moral, mas, também, intelectual Um intelecto não circunscrito a um indivíduo, pois “[...] o intelecto não é o intelecto de alguém, mas é universal e, sendo universal, é intelecto de todas as coisas”. Uma universalidade que pode ser relacionada a uma passagem da Isa Upanisad[5], que afirma que aquele que percebe o Ser em si  mesmo e a si mesmo em todos os Seres, não conhece o medo (Conf. KUPFER, 2009, p. 254).

Plotino também anula a diferença que Aristóteles propõe entre a theoria (contemplação) e práxis (ação), ao considerar que toda ação é o resultado do ato contemplativo. Portanto, o conceito plotiniano de contemplação criadora - onde não existe separação entre ação e contemplação -  não está mais preso ao pensamento grego nem, tampouco, se caracteriza como um pensamento cristão.

Uma união que seria, segundo a tradição hindu, propiciadora da própria imortalidade: “... aqueles capazes de combinar ação e contemplação, atravessando o mar da morte pela ação, alcançam a imortalidade através da contemplação” (Citado por KUPFER, 2009, p. 255).
Mas é, sobretudo, na Idade Média que a contemplação passa a ser fortemente associado à dimensão religiosa, o que explica, em grande medida, as reações de oposição à ideia de contemplação a partir da ruptura cartesiana. Apesar disso, verificamos que a teoria como ação de ver, contemplar e meditar está voltada para uma atitude na qual não se percebe nada da intenção de Descartes de tornar o homem, a partir do conhecimento, senhor e proprietário da natureza.

Concepção que nos leva às reflexões de Michel Foucault, para quem o procedimento cartesiano requalificou o lema grego clássico conhece-te a ti mesmo em prejuízo de outro lema com qual fazia parte, cuidado de si: "Em primeiro lugar, pois, volver o olhar para si é desviá-lo dos outros. Desviá-lo dos outros quer dizer: desviá-lo da agitação cotidiana" (2004, p.268).
Um olhar que se dirige ao autoconhecimento, assim definido pelo Yoga: “Quando os cinco sentidos e a mente estão parados, e a própria razão descansa em silêncio, começa o caminho supremo” (Citado por KUPFER, 2009, p. 242). Que assim seja. Contemplar, para mim, é como meditar. Meu olhar, atento, é capaz então de tornar presente e significativo o que nele me falta. O que nele me completa.


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Referências bibliográficas
ATKINSON, William Walker. A Reencarnação e a Lei do Carma, São Paulo, Pensamento, 1997.
BEZERRA, Cícero Cunha. Compreender Plotino e Proclo. Petrópolis: Vozes, 2006.

FOUCAULT, M. A Hermenêutica do Sujeito. São Paulo: Martins Fontes, 2004.
KUPFER, Pedro. Formação em Yoga. Bombinas: Yogabindu, 2009. 
PESSANHA, J.A. Motta.  Santo Agostinho. São Paulo: Nova Cultura, 1987 (Os Pensadores).
PIEPER, J. Philosophie und Weisheit. ANO II No 4 (Suplemento) Jan-Abr 98 . www.hottopos.com/mirand4/suplem4/filosofi.htm. Acessado em 2007
PLOTINO. Enéada III. 8 [30]  Sobre a natureza, a contemplação e o Uno. Introdução, tradução e comentário de José Carlos Baracat Júnior. Campinas: Editora Unicamp, 2008.
REALE, Giovanni.  Plotino e Neoplatonismo: História da Filosofia Grega e Romana, Vol VIII. São Paulo: Edições Loyola, 2008.
WALLACE, B. Allan. Ciência Contemplativa: onde o budismo e a neurociência se encontram. São Paulo: Cultrix, 2009.

[1] Texto sobre Hatha Yoga, datado de século XVII.
[2] “A denominação ‘cristianismo primitivo’ compreende o período que vai da morte de Jesus em 33 A.D até a chamada “conversão de Constantino” (306-337) ocorrida ao que parece no ano de 337 d.C. CANTAREIRA – Revista Eletrônica de História - Volume 2  –  Número   2  –  Ano  3 – Ago. 2004. www.historia.uff.br/cantareira
[3] 185-254 d.C.
[4] 354-430 d.C
[5] Texto da tradição védica, com cerca de 3500 anos.